
Na manhã de terça-feira (28), a zona rural de Itamaraju foi palco de um episódio brutal. Um grupo armado, autodenominado indígena, invadiu a Associação Comunitária dos Pequenos Produtores Rurais Córrego da Barriguda — conhecida como “Pedra Mole” — abrindo fogo contra famílias que vivem e trabalham há décadas na região. O saldo: duas vidas ceifadas e pelo menos três feridos, entre agricultores que tentavam defender suas casas e terras.
Contudo, o tom adotado pelo governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, em pronunciamento oficial, causou revolta entre moradores e observadores da cena política. Em fala fria e burocrática, o chefe do Executivo estadual classificou o ocorrido como *“confronto entre indígenas e trabalhadores rurais” *, demonstrando desconhecimento — ou desinteresse — em reconhecer o caráter criminoso da ação.
> “A informação que eu tive até o momento é que foi confronto da fatalidade do ato, do enfrentamento entre eles (...) estou aguardando a secretaria me apontar se teve outra motivação”, afirmou o governador.
### Realidade no campo: não houve confronto, houve ataque
O relato das forças de segurança e dos moradores desmente a versão amenizada pelo governo. A 43ª CIPM, em operação comandada pelo **Major Coutinho, confirmou que os invasores chegaram fortemente armados, bloquearam acessos e atiraram contra agricultores. Houve perseguição, troca de tiros e apreensão de **armas, munições e rádios comunicadores.
Os suspeitos detidos confessaram participação direta no ataque. Ou seja, não se tratou de um “confronto”, mas de um atentado premeditado contra pessoas que vivem em um imóvel legalizado dentro de área pertencente ao programa Cédula da Terra — um projeto de financiamento fundiário, e não de demarcação indígena.
A tentativa de enquadrar a tragédia como “conflito” entre partes ignora o fato de que as famílias atingidas possuem amparo jurídico e histórico de ocupação produtiva da terra, enquanto os agressores se apresentaram como indígenas sem comprovação de legitimidade étnica reconhecida por órgãos federais.
### A distorção do discurso oficial
Ao afirmar que a área “é federal” e “do INCRA”, o governador tentou se esquivar de responsabilidade, transferindo a questão para a esfera da União. Contudo, a omissão diante de um crime dessa gravidade reforça a percepção de imparcialidade seletiva — o Estado parece endurecer quando se trata de agricultores, mas contemporiza quando os autores se declaram indígenas ou vinculados a movimentos de esquerda.
A postura governamental revela um padrão: a politização das tragédias rurais. Em vez de solidariedade às vítimas, o governo adota o discurso conveniente da neutralidade técnica, evitando desagradar grupos ideológicos próximos ao seu campo político.
## O histórico: o que foi o “Cédula da Terra”
Criado em 1996, o programa Cédula da Terra foi uma tentativa de “reforma agrária de mercado”, permitindo que trabalhadores rurais sem terra comprassem propriedades com recursos financiados. A ideia era facilitar o acesso à terra por meio do crédito, sem depender exclusivamente de desapropriações.
Mais tarde, o projeto evoluiu para o Banco da Terra, gerando polêmica entre movimentos sociais, em especial o **MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que criticou duramente o programa por considerar que **mercantilizava o acesso à terra e esvaziava a luta política pela desapropriação.
Na época, o MST acusou o governo federal de “privatizar a reforma agrária” e abandonar a função social da terra. Essa reação mostra que parte do movimento agrário nunca aceitou a via pacífica e produtiva proposta pelo programa — a de fomentar pequenos produtores legalizados, com títulos e deveres, em vez de invasores e ocupações ilegais.
## O contraste entre passado e presente
Curiosamente, o mesmo Estado que hoje relativiza a violência cometida por grupos que se autodeclaram indígenas é o que abandonou os princípios do Cédula da Terra: incentivo à produção, crédito, titulação e estabilidade no campo.
A tragédia de Itamaraju expõe a falência dessa política — famílias que seguiram a lei e produziram por anos são agora vítimas da violência e da omissão estatal.
Enquanto o governo hesita em nomear os fatos, o campo sangra. Não há “confronto” quando só um lado está com armas e o outro com enxadas.
Os corpos dos agricultores, Adalberto e Amauri, Pai e Filho, mortos pelos invasores, estão sendo velados na Câmara Municipal de Itamaraju.