
Prado (BA) — A publicação da Portaria nº 1073/2025, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que declara a posse permanente do Povo Pataxó sobre a Terra Indígena Comexa Bá, reacendeu tensões históricas na região. Embora o ato represente um avanço no processo de reconhecimento territorial dos povos originários, ele também escancara um ponto negligenciado pelo governo federal: o destino de dezenas de famílias não indígenas que vivem há gerações na área delimitada.
O documento assinado pelo ministro Ricardo Lewandowski reconhece oficialmente cerca de 28 mil hectares como território tradicional Pataxó, descrevendo limites que abrangem estradas, rios, córregos e áreas rurais ocupadas de forma contínua por pequenos agricultores, posseiros, pescadores e famílias que afirmam estar no local há mais de 100 anos. Entretanto, nenhuma linha da portaria trata dos impactos sociais da decisão ou de medidas de transição para essas comunidades.
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Famílias sob incerteza: “Ninguém nos diz o que vai acontecer”
Moradores relatam que acompanham o processo de demarcação há anos, mas que jamais receberam uma definição concreta do governo federal sobre indenizações, reassentamentos, regularizações ou qualquer tipo de diálogo estruturado.
Para muitas dessas famílias, trata-se do único lugar que conhecem. São pessoas que nasceram, criaram filhos e enterraram parentes nas comunidades hoje incluídas na demarcação. A ausência de um plano claro gera medo, insegurança jurídica e receio de expulsões forçadas.
A crítica que ecoa na região é direta:
Como o Estado pode reconhecer uma grande área como terra indígena sem apresentar simultaneamente uma política pública que dê respostas às famílias ali radicadas há um século?
O silêncio do governo: um vácuo que se repete
A portaria estabelece que caberá à Funai realizar a demarcação administrativa para posterior homologação presidencial. Porém, não há qualquer diretriz sobre medidas sociais paralelas — apesar de a situação envolver conflitos fundiários complexos e direitos adquiridos ao longo de sucessivas gerações.
Historicamente, processos desse tipo exigem:
levantamento fundiário,
avaliação de benfeitorias,
indenizações justas,
reassentamento planejado,
mediação contínua com as comunidades envolvidas.
Nenhuma dessas ações foi mencionada na portaria, que permanece estritamente técnica e cartográfica, como se não existissem seres humanos vivendo no perímetro traçado.
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Para especialistas, essa ausência de diretrizes agrava tensões sociais e pode configurar mais um caso de demarcação sem política social, erro recorrente que deixa populações vulneráveis à própria sorte.
Entre direitos indígenas e direitos sociais: o desafio que o governo ainda não enfrenta
Reconhecer o território tradicional é um direito constitucional dos povos indígenas. No entanto, reconhecer esse direito não pode significar negligenciar outros grupos vulneráveis, especialmente quando moradores foram incentivados pelo próprio Estado, décadas atrás, a ocupar e produzir na região.
A pergunta que ecoa, tanto entre famílias tradicionais quanto entre lideranças políticas do município, é simples:
Qual será o destino das pessoas que ali vivem há mais de 100 anos?
Sem resposta oficial, cresce a sensação de abandono — e também o risco de conflitos entre grupos que, historicamente, compartilham o mesmo território, embora sob diferentes narrativas e vínculos culturais.
Um dilema anunciado, mas ignorado
A demarcação da Terra Indígena Comexa Bá estava prevista há anos, conforme o processo iniciado em 2014. O governo teve tempo para preparar políticas de transição e diálogo, mas não o fez.
A portaria publicada agora evidencia uma postura de “resolver primeiro no papel e lidar depois com as consequências”.
Enquanto isso, famílias, muitas delas agricultoras de subsistência, seguem vivendo sob ameaça de perder suas casas, suas terras e sua história — sem saber se serão indenizadas, reassentadas ou simplesmente removidas.
Conclusão: A terra foi declarada. Mas o que será das pessoas?
A Portaria nº 1073/2025 atende a uma demanda legítima dos Pataxó, mas cria um vazio político e social que o governo ainda não se dispôs a preencher.
A preservação dos direitos indígenas é fundamental, mas a solução não pode — e não deve — passar por um Estado que reconhece um território sem oferecer alternativas justas às famílias que construíram suas vidas ali por mais de um século.
A região de Prado agora convive com um cenário de incerteza crescente. E enquanto o governo federal não se pronuncia, a pergunta permanece aberta:
quem será ouvido e quem será esquecido nesse processo?